Com amigos ou familiares, é frequente que as conversas nos levem a viajar no tempo, recordando histórias e pessoas. São conversas que, muitas vezes, começam com um simples “e quando…?” e se estendem, se preciso for, por largas horas.
E quando eu fui ver o Rally com a malta da Pampilhosa da Serra e de Janeiro de Cima? Esta é uma daquelas histórias que hei-de contar algumas vezes e que agora partilho convosco.
Começou a 30 de maio de 2019. Se, ao acordar, me dissessem que a noite seguinte seria passada ao relento, no cimo de uma serra no concelho de Góis, rir-me-ia. Tudo indicava que seria um dia de trabalho normal, mas pouco depois de entrar no escritório, soube que não seria ali que ia ficar e que o Rally de Portugal ia marcar fortemente a minha agenda. A ideia era acompanhar um grupo de Pampilhosa da Serra e de Janeiro de Cima que se juntou para ver a prova na primeira fila. A meio da manhã tinha um quarto de hotel reservado. Depois de uma conversa telefónica com o Miguel, o meu elo com o grupo, rapidamente percebi que a melhor forma de fazer o trabalho, seria fazer como eles: juntar mantimentos, encontrar um saco cama e acompanhar, do princípio ao fim, aquilo que se viria a revelar uma pequena aventura. Só faltava mesmo confirmar horários, sendo certo que antes do fim do dia a partida não aconteceria. Já a tarde corria para o fim, horário acertado: 19h30, Pampilhosa da Serra.
Já eram quase 21h00 quando a partida acontece. Cerca de 2 dezenas de pessoas, 6 jipes, 2 ligeiros – é num deles que sigo, com o Miguel - 1 atrelado, muita comida, ainda mais bebida. A primeira paragem aconteceria pouco depois. Esperava-se outro jipe. Lusco fusco, 4 piscas ligados e reunião em pleno asfalto.
A estrada é estreita e a caravana atrapalha a passagem de outros veículos. O movimento, tendo em conta a hora e o local, é maior que habitualmente. Mas este não é um dia normal. É o dia que marca o regresso do Rally de Portugal à Região Centro, 18 anos depois. “Estes já nos vão roubar lugar. Quanto mais demoramos, mais para trás ficamos”, ouço dizer. Decide-se arrancar e adiar a espera até à povoação mais próxima, onde se aproveita já para matar a sede e a fome. Chegado o último elemento, seguimos rumo ao destino final.
O obstáculo e a solução
Eram cerca de 22h30 quando chegámos à localidade de Capelo, já no concelho de Góis, e à subida que nos daria acesso à Zona de Espetáculo 8. Primeiro obstáculo: duas agentes da GNR, cuja presença no terreno é, de resto, muito visível, informam-nos que o acesso está encerrado desde as 17h00. Não vai ser possível transitar. Neste momento, todos os acessos estão cortados. Há troços onde será possível subir a partir das 05h00, mas este, nem a essa hora vai abrir. Uma informação que, sublinha o Miguel, não constava no site oficial da prova, mas nada há a fazer. Telefonemas para aqui, telefonemas para ali, procuram-se soluções e, sempre com boa disposição, apontam-se dedos aos que não cumpriram horários. “Se as ‘meninas’ não se tivessem demorado tanto, estávamos mais adiantados”, dizem várias vozes. Por telefone, um amigo informa o Miguel que em Celavisa há um trilho que dá acesso à zona espetáculo pretendida. Então, é para lá que vamos. Antecipando a dureza do terreno mais adiante, é aqui que fica o carro do Miguel. Mudamos para o jipe conduzido pelo Pedro, que segue acompanhado pelo Carlos.
Perto da meia noite, Celavisa. Paramos para esperar novas indicações e, já agora, para comer e beber. Há pão, pizzas, frango assado e carne grelhada e, como mais tarde havia de ver, muito mais. E, claro, há cerveja.
Põe-se a conversa em dia, fala-se de tudo e de nada, aproveita-se o café ainda aberto para repor os níveis de cafeína. À medida que o tempo avança, começa-se a manifestar a ânsia por chegar ao destino e impaciência pela espera que parece não acabar. "Mas nunca mais vamos?”, ouço algumas vezes. Entretanto, alguém apontava para uma luz no cimo da serra que seria o caminho e dizia “Estou a achar que aquela serra é muito a pique para a subirmos”. Resposta: “Aquilo é uma estrela, não é o cimo da serra!”.
A aventura da subida à serra
Já é quase uma da madrugada quando os motores voltam a trabalhar e seguimos as novas indicações. Mais um carro ligeiro que fica pelo caminho. A partir daqui, só mesmo os jipes vão conseguir circular e, rapidamente, percebi porquê. Trilhos estreitos, acidentados, a pique, à beira de precipícios que impõem respeito. “Já vi TT’s mais fáceis que isto”, diz o Carlos. É a primeira vez que ando por caminhos assim e sinto um nervosismo estranhamente agradável. É a adrenalina a correr pelo corpo todo, que se acentua quando olho pela janela e parece que estou num avião e vejo as luzinhas das ruas lá bem em baixo. Vamos subindo e subindo e percebo que, afinal, a serra era mesmo a pique e não era uma estrela. Nas bifurcações sem sinalização, o Carlos sai do carro para olhar para o chão e perceber qual o rumo certo (nunca se enganou). Nas curvas mais apertadas é preciso parar. Mais uma vez, o Carlos sai do jipe para ajudar com as manobras: “Mais para trás. Mais para a frente. Vira para aqui. Agora vira para ali. Já está”. É este jipe que leva o atrelado e é preciso mais cautela. Afinal, é ali que vai (quase) tudo o que nos vai garantir umas horas bem passadas: mesas, bancos, cadeiras, o gerador, a máquina de imperial - talvez, o bem mais valioso que transportamos – e toda a parafernália necessária ao seu funcionamento. Valem as mãos exímias aos volantes e a experiência em terrenos assim.
São duas da madrugada quando chegamos ao cimo da serra. Normalmente, deve ser quase deserta, mas hoje parece quase uma cidade. Dizem-nos que já não há lugares. Um susto que passou, pouco depois, quando percebemos, afinal, que havia ainda muito espaço.
Posição tomada, a barraca começa a ganhar forma, sendo que a prioridade é ligar o gerador e colocar a máquina da cerveja a funcionar. Depois, há que montar mesas, bancos, cortar o presunto, enfim, encher a mesa e jantar à séria. Há quem diga que precisa de dormir, mas não se prevê que tal possa acontecer tão cedo. Como boa barraca portuguesa, há música, com certeza, e não falham os grandes clássicos da música portuguesa. O que é nacional é bom.
Acompanhar provas não é propriamente uma experiência nova para qualquer um dos membros do grupo. São amantes de desportos motorizados e assistem e participam em iniciativas do género com frequência. Nota-se aliás, na organização e na logística, que não é desde ontem que andam nestas andanças. “Às vezes, há coisas que falham”, conta-me o Carlos, mais tarde. Mas, que me tenha dado conta, desta vez nada faltou. Nem a máquina de café ou o grelhador elétrico.
Brincadeiras, discussões e apostas
Tendo em conta que o Rally não passava por estas bandas há cerca de 18 anos, para alguns é a primeira vez que assistem de perto. Outros, ao contrário, já a viram, cá ou lá. Partilham essas e outras vivências, de outras experiências. "Lembras-te de quando fomos a fronteira?", ouve-se alguém perguntar. "Em Arganil, chovia que deus mandava", conta o Bruno. "Eu fui ver ao Algarve", diz o João.
A noite passa e a comida, a bebida e a música estão sempre presentes. Uns acabam por dormir, outros mantêm-se a pé e, entre comes e bebes e um dedo de conversa, chateiam quem dorme.
Cigano, mano, tio, primo e outras menos diplomáticas são algumas das formas de tratamento utilizadas que demonstram a cumplicidade que se desenvolve entre aqueles que partilham origens ou dividem experiências há muitos anos. Há brincadeiras que viram discussões e discussões que acabam em brincadeira ou apostas que, no fim, ficam por fechar. A boa disposição e o gosto pelo convívio descontraído prevalecem e é isso que faz com que a viagem valha a pena.
Que comece (ou continue) a festa
O sol começa a nascer e traz consigo um novo dia, o 31 de maio. Há carros e carrinhas e jipes e roulottes e tendas e pessoas por todo o lado. E há uma paisagem que me vai prender o olhar durante uma boa parte das horas seguintes.
À medida que passa o tempo, as atenções focam-se na Serra da Lousã, para onde temos vista direta e de onde vêm os carros. São quase 10h00 e, lá ao longe, já se vê poeira no ar. O primeiro carro passa cerca das 10h30.
Prende as atenções, assim como os seguintes, mas não demora muito até que o interesse volte a centrar-se naquela espécie de acampamento, na companhia de quem está, nos petiscos que não param de chegar à mesa, na bebida, nas conversas mais ou menos amenas. O Rally fica, assim, em segundo plano. “Vale a pena estarmos aqui por isto”, ouço o outro Pedro do grupo dizer, apontando para o que está à sua volta.
O fresco da madrugada deu lugar a um calor quase abrasador. Os copos cheios e os corpos à sombra é o que se quer. Terminada a primeira manga, já bem depois das 13h00, pego na mochila, digo “adeus e obrigada” e atravesso o troço. Preparo-me para, com o Miguel e o Carlos, iniciar uma descida bem acentuada, com cerca de 5km. É a mesma que quisemos subir na noite anterior e não foi permitido e no fundo da qual nos espera o carro que nos vai levar de regresso a casa.
Não sou fã de Rally, nem de (não) dormir num saco-cama ao relento, mas digo-vos que tudo o que vi, ouvi e vivi nestas horas ficará guardado no baú das memórias boas. A Região Centro tem sorte em ter o Rally de volta, proporcionando a desculpa perfeita para estas aventuras. Mas… com estas paisagens, com estas pessoas, é-me fácil dizer que também o Rally de Portugal tem sorte por poder acontecer na Região Centro e, em particular, nas Aldeias do Xisto. Uma sugestão: Se aproveitaram, repitam para o ano. Se não, façam por não perder esta experiência.
Ah! Ao volante de um Toyota Yaris, o estónio Ott Tanak foi o vencedor do Rally de Portugal deste ano. O belga Thierry Neuville, em Hyundai, vencedor no ano passado, ficou em segundo, e o líder da tabela do Mundial, Sébastien Ogier, em Citroën, garantiu o terceiro lugar do pódio com uma vitória na última especial. Mas isto… já vocês sabiam!
Texto: Andreia Gonçalves