Madeira, linho, burel, couro e, claro, muito trabalho e criatividade deram origem a uma barca nova, uma capucha, bolsas, suportes gráficos e… a novas ideias.
Ao longo de uma semana, 25 alunos e 8 docentes da Licenciatura em Design do DeCA-UA – Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro assentaram arraiais na Aldeia do Xisto de Janeiro de Cima para trazer à luz do dia projetos pensados e trabalhados ao longo do ano letivo, com as Aldeias do Xisto. A residência Project@X - Por Este Rio Acima, que decorreu de 15 a 22 de julho, englobou as temáticas da água, da natureza e do céu escuro e, além de professores e alunos, convocou a experiência e sabedoria dos habitantes da aldeia, sobretudo na área da carpintaria e da tecelagem. O resultado de todo o trabalho desenvolvido foi apresentado no dia 21 de julho, na Casa do Lagar da aldeia, e deu origem a uma exposição que ali estará patente até final de agosto.
"A missão da ADXTUR é gerar atratividade para o seu território. Fazê-lo nas condições atuais exige convocar e juntar novos atores para, junto com as aldeias e as suas comunidades, podermos encontrar novos caminhos de ativação das capacidades e competências que as aldeias ainda têm. No fundo, assumimos que as aldeias são uma escola e procuramos estimular a relação entre estes saberes e os saberes científicos, técnicos e artísticos." - enquadrou Rui Simão, coordenador da ADXTUR.
“Este projeto já começou há algum tempo e esta foi uma semana muito programada”, começa por explicar o professor Nuno Dias, que coordenou a generalidade dos trabalhos. Em abril, os alunos visitaram Janeiro de Cima e foram desafiados a desenvolver projetos inspirados nesta Aldeia do Xisto, procurando fortalecer a relação da comunidade com o rio, a noite e a natureza. Foram algumas destas ideias que ganharam vida nas oficinas da residência PROJECT@X. Ao longo dos dias, o trabalho desenvolveu-se em “três frentes muito específicas”. Na Casa das Tecedeiras, “um espaço ótimo e com excelentes condições”, funcionaram as oficinas do couro e dos têxteis, “que acabaram por ser uma só”. Aqui, o professor José Leite “deu as bases”, procurando incentivar e explorar a relação entre a aprendizagem na sala de aula e o trabalho num contexto real.
Foi desta oficina, desenvolvida pela Débora, Liliana e Maria, que nasceram uma nova capucha e um conjunto de bolsas em couro, linho e burel a pensar na mobilidade dos exploradores das Aldeias do Xisto. A criação e execução das peças, conjungando os diferentes materiais, proporcionaram a todas novas experiências. A tecedeira Rosa, que acompanhou todo o processo não foi exceção. “Gostei muito desta semana. Fiz coisas que nunca tinha feito e aprendi muito”, diz-nos sem hesitar.
Na Casa do Lagar, Débora e Liliana experimentaram a capucha e assumiram o “orgulho” pelo resultado do trabalho desenvolvido.
“Fizemos testes primeiro. Depois, começámos a pensar que podíamos juntar uma coisa e outra. O professor já não nos dizia nada, deixou-nos fluir”, conta Débora, já com os pés mergulhados no rio Zêzere. É que a semana, além de muito trabalho, proporcionou a todos momentos de lazer. O rio, que banha Janeiro de Cima, foi um dos destinos preferenciais para relaxar, fugir do calor e ganhar mais inspiração ainda.
Janeiro de Cima ganha nova barca
Foi também o rio Zêzere que, no último dia, recebeu a peça que, dada a tradição da aldeia, acabou por ganhar o maior protagonismo. Uma equipa de alunos, orientada pelo professor Paulo Bago d'Uva, especialista em Design Naval, desenvolveu uma interpretação contemporânea da tradicional Barca, que recebeu o nome de "Janeiro de Cima".
Foi na carpintaria de Acácio Costa Gaspar, que prestou apoio e partilhou conhecimentos, que a barca ganhou forma. "Correu tudo muito bem. O projeto está muito bem idealizado e foi muito bem executado. Acho que as pessoas vão gostar muito", considera. O mesmo diz das Oficinas do Couro e dos Têxteis: as peças ficaram "muito bem". O "sr. Acácio" manifesta ainda a disponibilidade para continuar a colaborar nesta e noutras iniciativas. "São uma mais valia para Janeiro de Cima", defende.
“Foi um grande desafio”, confessa Nuno Dias, satisfeito por terem alcançado o objetivo, que exigiu trabalhos pela noite fora, até quase ao último instante.
Todas as peças foram feitas à medida. “Agora, com os moldes, será mais fácil replicar os resultados”, acrescenta, dando conta que a equipa iniciou ainda a construção de uma segunda chamada “Janeiro de Baixo”. “A Barca está na água e estamos muito contentes com a resposta. É muito fácil de dirigir. Foi um sucesso”, diz.
E foi mesmo. Já o sol estava a escapar quando a Barca parou e voltou a solo firme. Durante a tarde, miúdos e graúdos revezaram-se para subir e descer aquele troço do rio, confirmando quão fácil é de manobrar.
A nova Barca foi também aprovada pelos barqueiros Paulo e Eduardo, que já há muito tempo perderam as contas das vezes e das pessoas que conduziram rio acima, rio abaixo. “Está muito boa. Não pensei que ficasse assim, superou as minhas expectativas”, diz Paulo. Depois de experimentar, Eduardo concorda. “Ficou muito boa. É muito fácil de manobrar”, considera, adiantando que, a seu ver, “é mais fácil com a vara que com os remos”.
"Devem voltar". É o que nos responde de imediato Américo Dias, habitante de Janeiro de Cima, quando questionado sobre a estadia de professores e alunos. "Se quisermos que a Aldeia acompanhe o século XXI, é preciso que haja inovação e evolução", diz. Américo elogia todo o trabalho desenvolvido. "A barca está bem equilibrada e gostei muito da ideia de ligar Janeiro de Cima a Janeiro de Baixo, porque sempre houve ligação entre as duas margens do rio", conta. Também os restantes trabalhos merecem destaque, porque "integram-se bem no meio envolvente". Diz mesmo que o mapa da flora está tão bem concebido que justifica perfeitamente a produção e venda ao público. Nota-se, diz, "um olhar diferente. Eles viram coisas que nós já não vemos".
Após a viagem inaugural a 22 de julho de 2019, a nova Barca voltou aos estaleiros para se preparar para a temporada do verão no rio, onde, a 4 de agosto, se juntou às barcas tradicionais para a já habitual prova de perícia, uma iniciativa integrada no programa da Caminhada de Janeiro de Cima.
Pedro Almeida foi o responsável pela oficina gráfica "Um Pouco de Cima", onde se trabalhou um portefólio de ideias também relacionadas com a Barca e com o mapa de Janeiro de Cima. Daqui resultaram objetos gráficos que reúnem curiosidades sobre este lugar e os seus usos e costumes. O herbário e o mapa da flora são dois exemplos.
“Chegámos ao fim com resultados muito satisfatórios”, conclui Nuno Dias. O professor destaca ainda que o grupo sai já com novas ideias. "Uma ideia leva a outra e estamos já a pensar numa forma mais ágil para transportar a barca ou em workshops de pintura", exemplifica.
"Trataram-nos como se fôssemos daqui"
A conclusão é consensual. “Foi uma semana muito produtiva” dizem quase a uma só voz o João, a Corina, a Verónica, a Maria, o Sérgio e, novamente, a Débora e a Liliana. Todos estão também de acordo quando se fala da importância de trabalhar no espaço específico que o projeto envolve. “Trabalhar dentro do contexto e contactarmos com as pessoas é muito diferente de estarmos na sala de aula” e ajuda até a definir um pouco mais o que procuram no futuro. Consideram que, numa próxima experiência, há arestas que podem ser limadas, mas, de modo geral, o balanço é mais que positivo. “As limitações acabam por ser um desafio que ultrapassamos e isso também é bom”, assinalam. Além da aprendizagem, destacam o convívio com a comunidade como ponto alto.“Trataram-nos como se fôssemos daqui e sentimo-nos muito bem”. Tanto, que alguns chegaram a pensar prolongar a estadia, mas a vontade de regressar a casa acabou por falar mais alto.
A troca de ideias e de conhecimentos entre quem vem e quem cá está, jovens e menos jovens, é uma experiência também valorizado pelos habitantes da aldeia, que partilham assim o seu modo de vida. "Correu tudo muito bem e as pessoas da aldeia gostam de receber estas iniciativas”, conta Sónia Latado, da Junta de Freguesia.
Além do apelo e incentivo à criatividade, aliando o moderno e o tradicional e promovendo a aprendizagem conjunta e intergeracional, este género de iniciativas reforça ainda a união da comunidade local, colocando todos a trabalhar em prol de um objetivo comum e que a todos beneficia.
Os resultados desta semana de trabalho deram origem a uma exposição, patente na Casa do Lagar, em Janeiro de Cima, até 31 de agosto.
Atividades como o Project@X - Por Este Rio Acima reforçam também as Aldeias do Xisto como uma marca-destino que, ao longo dos últimos anos, e a partir da atividade turística, da experimentação e do conhecimento, tem conseguido afirmar um território único no contexto da Região Centro e do País. Para isso, aposta no que há de mais distintivo e genuíno na paisagem e nas comunidades, atraindo investimento e abrindo a porta a projetos que experimentam a partir da essência dos lugares. A relação com a natureza, com a terra, e com as pessoas tem sido a bússola que norteia uma atuação que procura revitalizar o território a partir da sua singularidade cultural.
Texto: Andreia Gonçalves