Na serpenteante estrada que nos leva a caminho de Janeiro de Cima, o céu azul e o sol ainda quente contrastam com o branco das nuvens entaladas no vale lá em baixo. Se dúvidas houvesse por onde anda o Rio Zêzere, basta seguir o nevoeiro que acompanha o seu curso. O Dia de Agricultura Biológica, que aconteceu no passado dia 17 de outubro, nesta Aldeia do Xisto do concelho do Fundão, é mais um passo na caminhada do Laboratório Terra - O Regresso do Linho. Este projeto, desenvolvido pelas Aldeias do Xisto e que promove o regresso da plantação do linho às margens do rio Zêzere, procura envolver toda a comunidade e recriar todo o ciclo de produção, transformação e comercialização do linho, incluindo o tingimento, a tecelagem e o desenho de novos produtos.
Ao descermos para a aldeia somos engolidos pelo nevoeiro húmido e frio que se espraia a partir do rio. Mais tarde há de levantar e deixar que o sol reverbere no orvalho das folhas como pequenos diamantes. Mas, por agora, há que apertar os casacos. O formador Ricardo Ferreira, está já na companhia de Lurdes, Ilídio e Filomena, habitantes de Janeiro de Cima, que se quiserem juntar à saída de campo da manhã. Pouco depois chega Neuza Caires, vinda do Fundão e que reservou a sua participação nesta experiência através do Bookinxisto.
Caminhar, olhar, colher
Mal andamos meia dúzia de passos, ainda dentro do núcleo urbano da aldeia, e já o Ricardo e a Lurdes se pegam à conversa debruçados sobre umas plantas debatendo os diferentes nomes por que são são conhecidas. A Lurdes tem um conhecimento profundo e alargado de muitas das espécies de plantas e vai apanhando exemplares de todas aquelas com que se cruza. Ficamos a saber que há muitas que se podem comer em saladas, como por exemplo o Dente de Leão, muito comum nos relvados e excelente para desintoxicar o sangue; os Trevos, que podem substituir o sal, porque são ácidos e dão um toque avinagrado ao tempero; os rebentos ainda jovens da Silva; e o Saramago, de sabor muito idêntico à rúcula. Mas nestas coisas importa mesmo saber o que se colhe o que se come e, tal como se faz com os cogumelos, em caso de dúvida não há dúvida: é deixar estar e procurar outras espécies que se conheçam muito bem. A Dedaleira, por exemplo, fornece a digitalina para uso farmacêutico em casos de problemas cardíacos, mas ingerida pode ser letal.
Qualquer planta aromática tem aplicações medicinais e as pessoas nas aldeias ainda mantêm esse conhecimento empírico passado de geração em geração. Para isso é preciso ouvir com atenção, andar pelos campos e olhar para as plantas. É um património cultural e medicinal que está literalmente à mão de semear: são dezenas as plantas que se encontram neste curto percurso em redor de Janeiro de Cima, entusiasmando todos os participantes. A Avoadinha, também conhecida por Rabo de Raposa, é excelente para as diarreias. É uma das muitas plantas exóticas que têm sido introduzidas no nosso País ao longo dos anos, seja porque vêm a reboque nos transportes internacionais de rações e sementes, seja, nomeadamente no caso das plantas ornamentais, porque as pessoas simplesmente as importaram para embelezar os jardins.
O passeio anda lento, tal é o entusiasmo com que o grupo debate cada planta que encontra no caminho. E o conhecimento não pára de jorrar. O aroma da hortelã brava inunda de súbito o ar, e Lurdes apressa-se a dizer que, antigamente, quando havia muitos mosquitos, bastava pôr um raminho em cada orelha para impedir as picadas. Não há mosquitos, por isso ninguém experimenta, mas fica a imagem. Adiante! A Pimpinela é boa para as gripes. O Espinafre selvagem é uma iguaria muito versátil e saborosa na cozinha. O Trovisco, cortado pelo caule e enfiado na terra, afasta as toupeiras. Se dermos um banho de infusão de Giesta aos animais, ajudamo-los a libertarem-se de parasitas. A Hera combate a queda de cabelo e a caspa.
Embrenhamo-nos por carreiros em direção ao rio. Ilídio pára e olha em redor para as memórias daqueles passos. Este foi o caminho que mais fez na vida. A sua família tinha o terreno do outro lado do rio, que tinha de ser cultivado e cuidado todos os dias. Para isso era preciso ir de barca. Aliás, toda a gente em Janeiro de Cima tinha uma barca. "Antigamente, às vezes queríamos pôr o nosso barco na água e não conseguíamos, tal era a quantidade de outras barcas nas margens", lembra Filomena Latado. Hoje ainda lá está uma, solitária, coberta de pouco uso. O rio corre tranquilo deixando-se enamorar pela luxuriante vegetação refletida na superfície. O tempo é tão presente aqui.
Princípios da Agricultura Bológica
Depois de almoço, no lagar, a parte teórica tem mais público. Cerca de 16 pessoas, a maioria da aldeia, vieram conhecer os princípios da agricultura biológica. Começa por ter de se conhecer o ecossistema, a flora, a fauna e os aspetos geológicos: identificar árvores, arbustos e coberto vegetal, plantas para agricultura biológica e também plantas aromáticas, medicinais e espontâneas comestíveis. Importante é também conhecer os tipos de solo e decidir se se deve ou não mobilizá-los. Este workshop incidia fundamentalmente sobre os adubos, herbicidas, pesticidas e fungicidas naturais, por isso houve mais debate em redor das aplicações da compostagem e chorumes (termo usado para os adubos, herbicidas, pesticidas e fungicidas naturais).
"Estou a adorar", exclama Neuza Caires. Veio do Fundão de propósito, porque quer "usufruir melhor a vida" começando uma horta biológica no seu pequeno terreno de 2.500m2. "Só aquilo que aprendi hoje já acrescenta imensa informação ao que quero fazer", conclui. Garante que vai ser uma participante assíduas das ações do projeto O Regresso do Linho. Já Isaura Dias dos Santos, habitante de Janeiro de Cima, está nos antípodas das sua colega de workshop. Há 30 anos que cultiva uma horta. Mas ainda assim sabe que nunca se sabe tudo, como por exemplo "plantas que não sabia o nome, nem as suas utilizações". E entusiasmada remata que, depois do que viu e ouviu, vai "alterar algumas coisas na maneira de trabalhar a horta".
Texto e fotos: Bruno Ramos