Cerdeira, 7 de agosto de 2018. Há três dias que decorre oMaster em Cerâmica Japonesa, com Masakazu Kusakabe, no qual participam 13 pessoas de várias nacionalidades: Gunilla é ceramista e veio propositadamente da Suécia; de Londres, chega Anastacia, produtora de filmes e editora de livros; de França, vem o casal americano de engenheiros Stephanie e Forest; o casal Ana e Nuno vem de Santarém; de Lisboa, vem o professor e artista Fernando, a gestora de clientes Maria João, o chinês Ding e o americano Paul; Sara e Irene representam o Alentejo; e Izillda Gallo, da Serra de Aire, completa o grupo.
Já passa das dez da noite e todos se concentram junto ao forno sem fumo a lenha. Depois de muitas horas de espera, chegou finalmente a hora de conhecerem o resultado do trabalho desenvolvido nos três dias anteriores.
Masakazu Kusakabe está enfiado no forno, ainda quente, e começa a retirar peça por peça. “É meu”, “é do sensei”, “é teu” começa a ouvir-se. A ansiedade e a curiosidade são quase palpáveis e colocamo-nos em bicos de pés para que nada nos escape.“Não é noite de Natal, mas podia ser”, pensamos, quando observamos os sorrisos e risos de alegria e surpresa de cada um ao contemplarem as peças que lhes saíram da alma pelas mãos.
No final de se retirarem as várias dezenas de peças que se criaram em apenas dois dias, sentimo-nos seguros para afirmar que todos ficaram felizes com os presentes que receberam.
É agora tempo de arrumar tudo e preparar alguns detalhes para o dia seguinte. Há nova cozedura e o processo de preparação envolve alguns cuidados. É necessário desmontar as estruturas colocadas dentro do forno, que permitem dispor e organizar as peças, limpar os vestígios das peças anteriores e voltar a colocar tudo no sítio para receber as novas obras de arte. O encontro está marcado para as 09h00.
Sasukenei – Forno Sem Fumo
A curiosidade, a vontade de aprender mais e de praticar a arte da cerâmica são algumas das motivações apontadas pelos vários elementos que participam no curso. Contudo, o forno sem fumo a lenha, ou o Sasukenei, é a grande estrela.
Gunilla trabalha em cerâmica há mais de 40 anos e quer construir um forno a lenha. Veio propositadamente para adquirir conhecimentos sobre a melhor forma de o fazer. O mesmo propósito têm Stephanie e Forest.
“Soube que esta experiência ia acontecer e tinha imensa curiosidade em ver este forno a funcionar e produzir algumas peças sob a orientação do mestre japonês, ganhando conhecimentos suplementares. Estamos sempre a aprender”, considera, por seu turno, Fernando, sublinhando a ideia de que “este forno é inédito em Portugal”.
“Queria conhecer o processo de cozedura naquele forno e perceber os efeitos que tem nos materiais e já aprendi bastante”, acrescenta Ana. Nuno subscreve e partilha da opinião da esposa.
Para Izillda, o forno é “mágico” e “uma peça importante do património da Cerdeira e de todos os ceramistas”.
Sara demonstrava ainda algumas reservas quanto à estética das peças. “Ainda estou para perceber se gosto ou não dos efeitos”. Reconhece, contudo, que “é uma técnica artesanal ancestral que utiliza os elementos da natureza” e, por isso, “muito especial”.
Para Paul, um fotógrafo americano que viveu no Japão, em Singapura e agora residente em Lisboa, esta “é a coisa perfeita para eu fazer”. Paul encontrou este curso enquanto procurava informação sobre formas de trabalhar a cerâmica. Depois de muitos anos dedicados à fotografia, pretende agora dedicar algum tempo a uma “arte que possa ser tocada” e a criar coisas “que possam ser usadas e que criem uma ligação espiritual”. Amante da cerâmica japonesa, não demorou muito tempo a decidir participar.
O forno sem fumo foi construído por Masakazu Kusakabe em 2015, com o apoio das Aldeias do Xisto e da equipa de ceramistas da Cerdeira Arts & Crafts School. A sugestão de dotar este projeto artístico de uma estrutura deste género partiu do ceramista português Ricardo Lopes.
Esta técnica ancestral tem vindo a revelar-se fundamental para a cerâmica contemporânea. Os vários compartimentos ou câmaras permitem regular a temperatura e conduzir o calor, de modo a obter resultados, efeitos e vidrados únicos e diferentes. Por outro lado, permite realizar cozeduras em apenas 36 horas, conseguindo efeitos na cerâmica que, por norma, só se atingem em seis ou mais dias. Dentro deste forno, a temperatura pode atingir os 1300 °C.
Há algumas regras para seguir: a cozedura apoia-se num documento, construído informaticamente, onde consta a curva de temperatura a cada hora. O processo é monitorizado em permanência, com os utilizadores a dividirem-se em turnos, de modo a garantir que tudo corre mais ou menos como se pretende.
Toma-se nota da temperatura real e compara-se com os valores previstos. Consoante a relação, ajusta-se o procedimento. Por mais lenha se estiver abaixo, tirar brasas se for superior ou manter e continuar a acompanhar.
O forno está ligado a 3 termómetros onde a cada momento é possível consultar a temperatura. Fomenta-se e facilita-se assim o processo de experimentação sempre presente e fundamental na aprendizagem de todos os envolvidos. Desta forma, percebe-se, por exemplo, qual o ponto de cozedura de determinado material ou mistura de componentes, até que temperatura se mantêm intactos ou a partir de que ponto derretem.
Para muitas pessoas, impõe-se uma questão: como é que um fumo a lenha não liberta fogo? “O forno está construído de modo a que todo o dióxido de carbono seja consumido durante a própria cozedura”, explica Kerstin Thomas, artista e uma das principais responsáveis pelo movimento que tem vindo a colocar a Cerdeira no mapa artístico de Portugal e do Mundo. Masakazu Kusakabe fala em “combustão perfeita”.
Masakazu Kusakabe, o sensei
Masakazu Kusakabe já esteve várias vezes na Cerdeira. Num inglês fortemente marcado pelo sotaque nipónico, conta-nos que sente interesse por aldeias deste género, onde pode dar aso a outra atividade que lhe dá prazer: a observação das estrelas.
No site da Cerdeira Arts & Crafts School lê-se que esta Aldeia do Xisto é “o seu local de eleição na Europa, pela beleza e proximidade com a natureza, pelo seu forno, sempre único, pelo projeto Cerdeira Village que lhe diz muito, e sobretudo, pela forma carinhosa como é recebido pelos artistas portugueses”.
A sua forma de ensinar segue diversos princípios. As características dos “discípulos” e do local onde decorre o curso são preponderantes no método aplicado. Mas, independentemente dessas características, há algo que nunca fica de lado: a cultura japonesa.
“O sensei traz consigo todos os clichés do Japão: o sushi, os samurais, a cerimónia do chá. É muito engraçado”, diz Sara. “É meio velho, meio criança”, conclui com um sorriso.
É meticuloso, mas flexível o suficiente para dar espaço à criatividade. À sua e à dos que bebem avidamente os seus ensinamentos. Entre outros aspetos, é isto que “faz dele um excelente mestre”, considera Izillda. “É um processo evolutivo e uma dialética constante. Há sempre um diálogo com o barro e nunca é o mesmo”, completa.
O sensei incentiva constantemente a procura de novas possibilidades e novas variedades de cerâmica, criada a partir dos materiais tradicionais.
“Quero que levem daqui uma impressão forte”, diz. Importante também é a persistência: “Não desistam. Podemos corrigir cerca de 90% do que fazemos”.
Palavras que confirmam o que Kerstin Thomas já nos havia dito e que fomos também ouvindo dos participantes. “Está sempre a desafiar. Aqui procura-se o que é único, não tanto a perfeição da peça. Por isso, há sempre uma boa parte de experimentação”, refere.
Irene fez cerâmica há alguns anos e chegou à Cerdeira “sem expectativas”. O facto de o trabalho não se centrar na perfeição das peças foi um dos aspetos que mais a cativou.
Masakazu Kusakabe aplica o “wabi sabi”, um conceito japonês que procura encontrar a beleza na imperfeição. Uma espécie de perfeita imperfeição.
Aprender com os outros
O trabalho em equipa e a troca de experiências são outros dos aspetos realçados pelos participantes.
“Já aprendi muitas coisas e muitas técnicas. Aprende-se muito a ver os outros fazer”, diz Maria João, uma principiante na arte da cerâmica. Destaca ainda o “espírito comunitário” que se instalou entre todos, “muito diferente” daquele a que está habituada. O sossego e a beleza da aldeia que serve de cenário ao curso reforçam a ideia de que fez uma boa aposta.
Gunilla trabalha sozinha e nem sempre tem “oportunidade para discutir e trocar ideias”, algo que acontece a cada instante neste curso. Exemplifica, dizendo que tinha dificuldades com alguns acabamentos nas suas peças. Na Cerdeira, aprendeu com o ceramista residente Renato Costa e Silva como ultrapassar os obstáculos.
Por outro lado, percebeu que, quando se encontram outros profissionais, além de aprender também consegue ensinar.
“Sinto que a minha experiência é útil para outras pessoas”.
“Não se conhece as pessoas e, de repente, há um team building brutal”, frisa Sara.
Anastacia é produtora de filmes e editora de livros em Londres. Passou pela Cerdeira em março, altura em que Kerstin Thomas lhe falou deste curso. O seu interesse pela cerâmica e pela estética japonesa levaram-na a inscrever-se. Já fez algumas peças, mas não tem qualquer formação e, por exemplo, nunca tinha trabalhado com a roda.
Chegou sem planos. “Só queria aprender o máximo que conseguisse”. No momento em que falámos, ainda ao curso não ia a meio e já o balanço era positivo. “Há dois dias, não sabia trabalhar na roda. Agora já consigo”, diz, feliz.
No caso de Ding, um chinês a viver em Lisboa, a Cerdeira foi o fator que maior atração exerceu. Gosta de cerâmica e está também interessado noutras matérias, mas o que pretende mesmo é conhecer sítios como a Aldeia do Xisto.
Cerdeira tem movimento artístico “impressionante”
Quando se fala na Cerdeira, fala-se em arte, em criatividade, em beleza natural e paisagens deslumbrantes. Uma combinação de elementos que tem vindo a atrair cada vez mais pessoas, quer para aprender e participar nos workshops e cursos que acontecem frequentemente ou simplesmente para desfrutar de um cenário idílico que relaxa o corpo e a alma.
A dedicação às atividades artísticas dificilmente passa despercebida a quem passa nesta Aldeia do Xisto e os formandos do curso de Cerâmica Japonesa não são exceção. Irene afirma-se “impressionada” com o movimento artístico que está a ser desenvolvido na Cerdeira, que, de resto, diz ser um elemento característico das Aldeias do Xisto.
“Não é apenas um projeto turístico, é um projeto que pensa também nas pessoas que têm interesse em fixar-se por cá”.
Por seu turno, a sueca Gunilla assume-se admiradora de Kirsten Thomas e de todos os que contribuíram para esta realidade.
Workhops desafiam a criatividade dos visitantes
A Cerdeira Arts & Crafts School disponibiliza, permanentemente, sob marcação, vários workshops. De acordo com Kerstin Thomas, muitas vezes são marcados em cima da hora. As pessoas chegam e acabam por se deixar levar pelo ambiente e pela vontade de experimentar coisas novas ou reviver memórias de infância.
8 de agosto de 2018. São agora 10h00 e chegam os primeiros participantes do workshop de Figurado em Cerâmica. São e Nuno (os pais) e Carolina e Tomás (os filhos), vindos de Sintra, aproveitam para espreitar o que se está a passar em torno do forno sem fumo, enquanto Kerstin Thomas prepara os materiais para o workshop. Apesar da brisa fresca e do nevoeiro que acentua a mística da aldeia, escolheu como cenário um terraço com uma vista magnífica para a Serra da Lousã. Pouco depois, chegam Clarissa e Sebastian (mãe e filho), oriundos de Nova Jérsia, e está tudo pronto para começar.
Após uma breve apresentação, em que ficou claro que “as mãos são a nossa principal ferramenta”, é tempo de por as mãos no barro. “Vamos fazer dois exercícios e depois vocês fazem o que quiserem”, começa Kerstin. Assim foi e assim se passaram duas horas em que a criatividade de cada um tomou várias formas.
A aldeia está cheia, com os alojamentos lotados e, não raras vezes, vão passando pessoas em jeito de passeio. Mostram-se curiosas com o que se passa e sorriem quando veem as atividades em curso.
No final, todos deixaram o local com um sorriso. “Foi muito giro”, sublinhou São. “Dá para relaxar”, acrescenta enquanto se dirige à filha para dizer “vamos comprar barro e fazer isto em casa”. A filha concorda. Está decidido.
Lá no forno, a agitação é notória. Enquanto uns cortam lenha, outros transportam as peças produzidas enquanto decorria a primeira cozedura.
O sensei já está de novo dentro do forno para dispor as placas e os tijolos necessários, previamente limpos, e introduzir as peças. Forest presta-lhe apoio e, à medida que o sensei vai apontando, vai passando uma a uma.
Tudo vai tomando forma e ficando preparado para mais uma cozedura, mais turnos, mais anotações, pouco descanso, mas com a ansiedade para que o tempo passe e, mais uma vez, seja noite de Natal sem o ser.
Texto e fotos: Andreia Gonçalves