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A luz que surge nos buracos negros

Armando Carvalho, 01 nov 2018
Era uma vez um mapa com um buraco negro. Não seria o único, mas garantidamente seria um dos mais negros.

No ano 2000 decretou-se acabar com esse buraco negro, utilizando os recursos disponíveis mais adequados: um conjunto de autarcas compreensivos e colaborantes, uma colheita de muito bons técnicos, e uma multidão que não quis abandonar o seu passado, nem perder a sua identidade, que acreditou e participou sorrindo para o futuro. E assim, muito do que estava devoluto ou em ruína deixou de estar e passou a ser imagem de uma região e de uma expressão que entrou em voga – Aldeias do Xisto. A surpresa para os que quiseram admirar a obra de perto foi grande: não só “as coisas estavam mesmo bem feitas”, como, para além disso, surgiu investimento privado, novos serviços e produtos, negócio e emprego. O resto do caminho, sobejamente conhecido, deu muito que falar e trouxe-nos até aqui, hoje. 

Olhamos para trás e perguntamos: valeu a pena? Sem dúvida que houve muito património que não se perdeu. O génio dos que ainda estão envolvidos no projeto conseguiu, em algumas aldeias, ressuscitar do esquecimento um património cultural imaterial, ou a arte do saber fazer, que agora as diferencia. E aquelas pessoas que, de alguma forma, sempre ali estiveram, passaram a perceber que aquilo que eram, aquilo que são, aquilo que tinham, aquilo que têm, passou a ser admirado por muitos. Em nenhuma farmácia se vendia ou se vende auto-estima, para com ela curar os males das pessoas que deixamos esquecidas nos territórios. Mas foi remédio que bastou para se implementarem as mudanças que a modernidade já impunha e que a condição humana exigia. Valeu a pena? Claro que sim. Diga-se, também para deleite dos visitantes. Continuam a existir buracos negros no País? Sim, com a agravante de que cada vez são mais, maiores e mais negros. O exercício de censos, para o qual todos nós seremos convocados daqui a um ou dois anos, vai-nos fazer doer a alma quando o escrutínio da estatística o demonstrar. 

O facto de, no momento exacto, a Administração Central e Regional ter, pela primeira vez, apadrinhado uma aliança de desenvolvimento que casava o poder local com os agentes privados do território – entenda-se, o nascimento da ADXTUR- Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto - fez uma absoluta diferença. A história da ADXTUR é um património do País:

- porque demonstra como uma rede colaborativa, com pelo menos um mínimo denominador comum de interesses transversais, pode marcar a diferença em territórios onde os recursos parecem ser escassos, a capacitação dos recursos humanos é reduzida, a organização é inexistente e a predisposição para iniciativas articuladas é coisa que não faz parte dos planos de atuação;

- porque demonstra que, mesmo com o objetivo fixado na promoção turística, se pode e deve prestar atenção a outras atividades que promovem outros tantos recursos locais;

- porque demonstra que as políticas públicas de desenvolvimento devem saber avaliar o mérito e terem continuidade no tempo, o que lhes permite assegurarem uma certa medida de sustentabilidade ao nosso património aldeias; 

- porque demonstra que um projecto com o tema aldeias apenas resiste e se afirma se tiver a genialidade de equacionar o território e todos os recursos existentes;

- porque demonstra que, no pequeno universo de apenas 27 aldeias, algumas delas, ou mesmo o conjunto, já foi mais do que uma vez inovador em algo.

Quando o movimento de despovoamento é avassalador, importa perguntar aos que ainda ficam, aos que nas aldeias ainda se fixam, porque o fazem. E também pensar com eles que novas formas podemos criar e o que devemos reinventar, para que as pessoas nelas fiquem ou nelas se fixem. Mesmo que o façam a tempo parcial ou sazonalmente. Mesmo que seja apenas local de fim de semana, de férias ou de um pequeno negócio. Afinal, que papel reservamos para as nossas aldeias no futuro de Portugal? Não será o funcionamento das aldeias a única forma de manter vivos e ativos os seus territórios? E que entidade pensa o assunto aldeias? Foi só, à sua maneira, a Junta de Colonização Interna, no tempo do Estado Novo? Ficámos por aí? Então, qual é a resposta global e coerente do Portugal de Abril e dos valores europeus da Coesão Territorial e da Coesão Social? A resolução dos problemas da floresta portuguesa já não está ao alcance das soluções da engenharia florestal. A solução é externa. Tem que vir do mercado, dum mercado que consuma produtos oriundos da nossa floresta. Sem isso, os nossos espaços florestais continuarão a ser um buraco negro cada vez maior. O mesmo se aplica às nossas aldeias. As Aldeias do Xisto são as únicas que são em xisto? A nossa geologia responde que não. O projeto Agricultura Lusitana não poderia ter acontecido em qualquer geografia do País? Os criativos, os designers, os artesãos, as estilitas e os artistas, não se envolveriam num projeto semelhante mais para Norte ou mais para Sul? Criatividade. Estratégia. Escala de actuação. Diferenciação. Inovação. Parceria. Articulação. Continuidade. Afectos, que é como quem diz, pessoas. Daria, abusivamente em nome do País, um imenso obrigado à ADXTUR por ter demonstrado à política que o caminho para acabar com alguns buracos negros no interior pode ser por aí.