“Será um espetáculo multidisciplinar, uma peça estranha que envolve um violino e a presença de vários elementos que são familiares ao público. Partindo da ideia que tudo pode ser música, a experimentação marca o espetáculo, assim como o improviso, não deixando, contudo, de haver uma narrativa. Mas não serão só coisas boas, porque a vida também não é feita apenas de coisas boas”. Era assim que a violonista Maria do Mar, uns dias antes, nos descrevia o espetáculo que, a 3 de agosto, encerrou a residência artística que realizou no âmbito do XJazz - Encontros do Jazz nas Aldeias do Xisto 2024. De 23 de julho a 2 de agosto, a artista conviveu com a comunidade da Aldeia do Xisto da Barroca, no concelho do Fundão, com músicos e outros artistas da região, recolheu sons, imagens e objetos que contam a história destes lugares e das pessoas que os habitam.
Pelas 16h30, o Largo das Festas da Barroca já se encontrava imerso no reboliço dos preparativos para o concerto. A esplanada do Clube dos Amigos da Barroca vibrava com a curiosidade dos presentes, que se perguntavam quem seriam os músicos e de onde vinham. A escolha do lugar não foi um mero acaso. “Queria envolver a comunidade e, por isso, o espetáculo teria de ser na rua, estabelecendo maior proximidade com o público”, explicou a artista.
Maria do Mar convidou uma mistura eclética de músicos para este concerto, com quem conviveu ao longo dos 11 dias: as Adufeiras do Paul, conhecidas pelo seu repertório tradicional e ligadas ao concelho da Covilhã; e membros do coletivo de música exploratória e contemporânea Profound Whatever, sediado no Pesinho, concelho do Fundão. Dá, assim, continuidade ao projeto Grão, que a tem levado a diversos lugares. “Tenho interesse em tudo o que envolve os viveres, o passado, as tradições, as coisas ancestrais”, explicou.
Este encontro de diferentes geografias e estilos resultou numa rica tapeçaria sonora, tecida pela temática comum da água e das pedras, elementos profundamente enraizados na identidade local.
Ao longo do concerto, os sons evocavam a dualidade dos elementos naturais e das vidas que moldam o território. Gravações de campo com sons de água e de pedras eram entrelaçadas com as alegres e animadas cantigas das Adufeiras, frequentemente aludindo às lavadeiras e às pedrinhas da ribeira, em contraste com o som mais sombrio e denso do violino de Maria do Mar, complementado pela guitarra (João Clemente), baixo (Gabriel Neves) e trompa (Catarina Silva) dos músicos do coletivo. “Estou muito contente por poder contar com as Adufeiras do Paul, que conferem ancestralidade ao espetáculo, e com os membros do coletivo Profound Whatever, que conferem aqui uma dimensão mais experimental”, referiu.
No espaço do concerto, encontrava-se também uma instalação de vídeo que exibia filmagens das minas abandonadas e do rio Zêzere, marcado pela poluição. Maria do Mar bem nos avisou de que não iria “falar só de coisas boas”. Junto às tílias do Largo das Festas estavam expostas "memórias do povo", uma coleção de ferramentas de trabalho e objetos do quotidiano, alguns dos quais transformados em instrumentos musicais, reforçando a ligação entre o passado e o presente.
Durante toda a noite se ouviu o curioso contraponto do burburinho constante do café, o tilintar dos copos, as crianças a correr e as conversas despreocupadas dos moradores. Uma justaposição de sons do dia a dia com o momento musical, que criou uma atmosfera única, onde a vivência quotidiana e a expressão artística coexistiam.
O concerto foi um momento de encontro entre o passado e o presente, entre a natureza e a cultura, e entre diferentes formas de viver e expressar o território.
Texto: Andreia Gonçalves e Sofia Colaço
Imagens: Sofia Colaço